A diferença entre remédio e veneno é apenas…

a DOSE! E apesar da época em que essa frase foi dita por Paracelso (pseudônimo de um cara com um nome gigante e muito feio), hoje sabe-se que isso é verdade. Por exemplo, o diazepam, usado como ansiolítico e anti-convulsivante mas que já foi (e ainda é) usado por muitas pessoas para a tentativa de suicídio. Ou a toxina botulínica, a toxina biológica mais potente da natureza, cujo alguns microgramas apenas são suficientes para matar um humano, mas que vem sendo usada para diversos fins terapêuticos como o botox. Ou mesmo o chocolate, paixão de toda mulher, mas que pode ser letal aos caninos, vem sendo usada experimentalmente para o controle de coyotes nos EUA. E também o…

Como dá pra ver, a lista é imensa. Apenas variando a dose é possivel tornar algo supostamente inofensivo ou que tem como objetivo amenizar certos sintomas, em uma substância letal (ou o inverso, vide o botox). No artigo de hoje, tentarei da forma mais simples possivél explicar os mecanismos presentes em algumas da intoxicações mais frequentes.

Chocolate

Sim, quem não gosta? É realmente uma delicia (as mulheres que o digam). Mas infelizmente seu melhor amigo vai ter que ficar sem experimentar esse manjar dos deuses, pois chocolate é altamente tóxico para eles. O chocolate possui uma substância conhecida como teobromina. O fígado humano tira esse cara ai de letra; é necessário em torno de 50kg de chocolate pra intoxicar um humano com chocolate. Já nossos amigos não possuem tanta eficiência em metabolizar essa substância, sendo necessário em torno de 100mg/kg para intoxicar um cachorro (valores podem variar de acordo com a sensibilidade do animal). Além de uma meia-vida muito alta da teobromina nessa espécie (em torno de 17h), soma-se ao fato de sua metabolização ser falha o que resulta em uma substância letal aos cães.

Os sintomas são leves, como diarréia e vômito mas dependendo da quantidade ingerida, podem haver tremores, hiperatividade, e até mesmo convulsões e arritmias cárdiacas. O tratamento é feito em cima dos sintomas além de tentar impedir a absorção (do que sobrou) do chocolate pelo trato digestório do animal.

Devido a alta toxidade em caninos, alguns cientistas americanos estudam o uso de chocolate para fazer o controle de coiotes que causam prejuizo a fazendeiros pois se alimentam de animais do gado local.

Paracetamol

Nosso amigo de longa data, presente em medicamentos famosos com o Tylenol ou o Vick, sem dúvidas é o campeão de intoxicações pelo mal uso de fármacos entre humanos. As pessoas nem imaginam que, apesar dos bons resultados anti-térmicos desse fármaco, que seu uso deve ser bem feito devido a sua toxicidade ao fígado, não só dos animais, dos humanos também. Aqui, infelizmente terei que falar um pouco sobre o metabolismo desse farmaco (metabolismo não é um assunto fácil ao meu ver). O paracetamol é metabolizado no fígado por duas vias distintas: por uma delas, é conjugado com alguns radicais gerando um composto inativo. Pela segunda via, que ocorre em menor proporção, ocorre a formação de um composto altamente reativo e causador de problemas, o NAPBQI (é uma sigla, o nome todo desse cara é muito feio). Para inativar esse cara, o fígado faz sua conjugação com uma substância conhecida como glutationa, gerando um composto toxicologicamente inerte. Ótimo, sem problemas.

O problema começa quando uma pessoa/animal ingere altas doses de paracetamol. A primeira via de metabolização, a mais segura, fica saturada, e sobra pra segunda via o trabalho. O NAPBQI é produzido em excesso, e aqui começa a baderna. E a bagunça só aumenta visto que a glutationa disponivél no figado se esgota rapidamente; o que resulta em uma liberdade total para esse serial killer do fígado. Livre e desimpedido, ele vai se ligar a outras moléculas das células hepáticas, incluindo as presentes na membrana célular destas, o que pode causar a morte dos hepatócitos. Por consequência, necrose hepática podendo chegar à falência hepática, e morte.

Triste não? A coisa pode ser pior para nossos amigos felinos: JAMAIS DÊ PARACETAMOL OU QUALQUER MEDICAMENTO CONTENDO ESTE PARA GATOS. Esses pobres seres são deficientes em uma enzima que faz parte da primeira via de metabolização do paracetamol; ou seja, a segunda via é mais usada o que leva a formação maior e mais rápida do NABPQI (e o resto da história já conhecemos).

Podem ocorrer vômitos, anorexia (não quer comer), depressão, disturbios respiratórios e todos os problemas que podem ocorrer em uma pessoa/animal quando o seu fígado é arrebentado. Mas se diagnósticada a tempo, essa intoxicação é tratável.

Aldicarb

Conhece esse cara? Não? Conhece sim, aposto. Se estivesse escrito no título, “chumbinho”, aposto que você reconheceria. Pois é, esse é o nome do fármaco que é o famoso chumbinho, vendido (ilegalmente) como raticidas nas cidades. Com esse cara o buraco é mais emcima; sua ação tóxica não é no fígado, mas sim à nivél de sistema nervoso central (SNC).

Todos sabem que o sistema nervoso é formado por uma complexa rede de neurônios que interagem através de substâncias químicas, os neuro-transmissores. Um desses neuro-transmissores é conhecido como acetilcolina, e fisiologicamente falando, sua função no organismo é regular este a uma condição que alguns autores chamam de “viva e deixe viver”. Ou seja, tudo na paz, tudo de boa, seu organismo realizando suas funções de maneira equilibrada conforme as necessidades, e blablabla

Então seu querido filhinho sapeca de 4 aninhos, ou seu amado pudu (poddle pra quem não entendeu) vai e come aquela bola de chumbinho que você botou debaixo do fogão para matar ratos. Obviamente, temos um problema nesse momento. A criatura que ingeriu isso então fica apatico, com dificuldades respiratórias além de não conseguir segurar o traseiro o que resulta em diarréia intensa e sem controle, ocorrendo o mesmo com o ato de urinar. A “baba” escorre por sua boca, enquanto começam as convulsões. (não é obrigatório todos esses sintomas acontecerem, assim como outros sintomas não citados podem estar presentes).

Porque isso acontece? Tudo em excesso faz mau certo? Então, “viver” demais também faz mau. Assim como sua mãe te acorda quando você está “vivendo demais” na sua cama após aquela bebedeira fenomenal, a acetilcolina também tem uma mãe, uma enzima conhecida como acetilcolinesterase. Essa enzima degrada a acetilcolina e termina os seus efeitos quimicos no sistema nervoso. O aldicarb faz o que muita gente tem vontade de fazer quando adolescente (que maldade): mata a mãe (em termos: inibe a ação da colinesterase).

Assim, os efeitos da acetilcolina ocorrem excessivamente, e os resultados já foram ditos acima. Em humanos, assim como ocorre por acidente a ingestão do aldicarb, também é comum o uso deste em tentativas de suicidio. Nos animais, ambos os lados ocorrem: o seu cachorro come a isca do rato por acidente, ou aquele seu vizinho mau joga uma carne recheada com chumbinho.

O tratamento é relativamente simples e relativamente barato. No entanto, depende muito da dose ingerida, e principalmente do tempo decorrido após a ingestão do veneno até a chegada ao médico; quanto mais cedo, melhor.

Só ressaltando: o uso de chumbinho como raticidas é ilegal, assim como a sua venda. Não contribua com esse crime.

E aqui nos despedimos de mais um post. Estejam a vontade para elogios, críticas, chingamentos e etc. No mais, beijo na mamãe, no papai, nas crianças, e até a próxima!